
Transtorno do Espectro Autista e sua história
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é definido como uma condição do neurodesenvolvimento em que o indivíduo apresenta comunicação social prejudicada bem como um padrão comportamental restrito e repetitivo, os quais levam a prejuízos marcantes em diferentes esferas de sua vida1.
O termo Autismo foi inicialmente disseminado pelo psiquiatra Bleuler em 1911 como um sintoma fundamental de esquizofrenia, referindo-se à dissociação entre o indivíduo e seu mundo exterior2.
Em 1943, o psiquiatra austríaco Leo Kanner3 traz o relato de 11 casos de crianças que aparentemente apresentavam uma nova forma de transtorno emocional – distúrbio autístico de contato afetivo, com dificuldades de relacionamento social e alta sensibilidade a mudanças ambientais. Apesar de Hans Asperger ter publicado sua descrição de psicopatia autística infantil em 19444, apenas em 1991 seu trabalho foi difundido em grande escala pela psiquiatra inglesa Lorna Wing no livro Autismo e Síndrome de Asperger5. Tanto Kanner quanto Asperger relatavam a precocidade no aparecimento dos sintomas (primeira infância) bem como similaridades comportamentais entre pacientes e seus genitores, empiricamente registrando o aspecto genético do TEA. Diferentemente dos casos relatados por Kanner, entretanto, Asperger descrevia casos de pacientes com bom nível de inteligência e desenvolvimento de linguagem, já apontando para a heterogeneidade sintomatológica hoje definida no conceito de espectro.
A partir da década de 1980, a terceira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de transtornos mentais desenvolvido pela Associação Americana de Psiquiatria (APA) DSM-III6 classifica o autismo como distúrbio invasivo do desenvolvimento, categoria separada da esquizofrenia de início na infância. Em 1994, o autismo é reclassificado como um distúrbio global do desenvolvimento7 e apenas em 2013, DSM-5 traz a categoria Transtorno do Espectro Autista1, também adotada pela Classificação Internacional de Doenças em sua 11ª revisão, a CID-118. É importante destacar que em 2022 a APA revisou o texto de seus critérios diagnósticos e, apesar de não alterar nenhum critério para o TEA, instituiu a obrigatoriedade de alguns itens, destacados no texto a seguir.
De acordo com DSM-5-TR9, para que tenhamos um diagnóstico de TEA é necessário que um indivíduo preencha os seguintes critérios diagnósticos:
- Déficits persistentes na comunicação e interação social em vários contextos, atuais ou históricos:
- Déficits na reciprocidade socioemocional
- Abordagem social anormal
- Dificuldade de estabelecer uma conversa normal
- Compartilhamento reduzido de interesses, emoções ou afeto
- Dificuldade para iniciar ou responder a interação social
- Déficits na comunicação não-verbal
- Anormalidade no contato visual
- Anormalidades na linguagem corporal
- Deficits na compreensão e uso de gestos
- Ausência de expressões faciais
- Déficits em desenvolver, manter e compreender relacionamentos
- Dificuldade de se adequar a contextos sociais diversos
- Dificuldade em compartilhar brincadeiras imaginativas
- Dificuldade em fazer amigos
- Ausência de interesses por pares
- Padrões repetitivos e restritos de comportamento, atividades ou interesses, conforme manifestado por pelo menos dois dos seguintes itens, ou por histórico prévio:
- Movimentos motores estereotipados ou repetitivos
- Estereotipias motoras simples
- Fala estereotipada ou repetitiva, ecolalia
- Insistência nas mesmas coisas, adesão inflexível a rotina ou padrões ritualizados de comportamento verbal e não-verbal
- Sofrimento extremo em relação a pequenas mudanças
- Padrões rígidos de pensamento
- Necessidade de rituais
- Comer mesma comida ou pegar o mesmo caminho todos os dias
- Interesses fixos e altamente restritos
- Forte apego ou preocupações com objetos incomuns
- Interesses excessivamente circunscritos ou perseverantes
- Hiper ou hiporreatividade a estímulos sensoriais ou interesse incomum por aspectos sensoriais do ambiente
- Cheirar ou tocar objetos de formas excessivas
- Fascinação visual por luzes ou movimentos
- Aparente indiferença a dor ou temperatura
- Reação exacerbada a sons e texturas específicos
- Sintomas devem estar presentes no início do período de desenvolvimento infantil, porém podem não se manifestar completamente até que a demanda social exceda as capacidades limitadas. Além disso, sintomas podem ser mascarados por estratégias aprendidas em estágios posteriores da vida.
- Sintomas causam prejuízo clinicamente significativo na área social, ocupacional ou outras áreas importantes de funcionamento.
- Sintomas não são melhor explicados por deficiência intelectual ou atraso global de desenvolvimento.
Também devemos especificar o nível de suporte necessário para o indivíduo tanto para os prejuízos de comunicação social bem como padrão de comportamentos fixos e restritos. São considerados 3 níveis de suporte:
- Nível 3 – requer muito suporte (Apresenta déficits graves na comunicação social verbal e não verbal que causam grave prejuízo no funcionamento, interações sociais muito limitadas, p. ex. emite poucas palavras, raramente inicia interação. Comportamento muito inflexível, extrema dificuldade em lidar com mudança, comportamentos repetitivos interferem marcadamente em todas as esferas.)
- Nível 2 – requer suporte moderado (Apresenta déficits marcados na comunicação social verbal e não verbal, prejuízos sociais aparentes mesmo com presença de suporte, iniciativa de interação social limitada, p. ex. fala frases simples, interage apenas quando se trata de seus interesses restritos, comunicação não verbal muito anormal. Comportamento inflexível, dificuldade em lidar com mudança, comportamentos repetitivos frequentes o bastante para chamarem a atenção de qualquer observador e interferem com o funcionamento em uma variedade de contextos).
- Nível 1 – requer suporte (Sem suporte os déficits na comunicação social causam prejuízo observável, dificuldades em iniciar interações sociais e claros exemplos de respostas malsucedidas na interação iniciada por outros. Pode aparentar menor interesse por interações sociais. Por exemplo: pessoa que fala muitas frases e se engaja em comunicação com outros, porém não consegue apresentar respostas adequadas de reciprocidade socioemocional, tentativas de estabelecer relacionamentos são estranhas e tipicamente infrutíferas. Inflexibilidade de comportamento causa interferência significativa em um ou mais contextos. Dificuldade em trocar de atividades. Problemas de organização e planejamento atrapalham autonomia.)
As recentes mudanças nos critérios diagnósticos de TEA trouxeram a possibilidade da identificação de uma geração inteira de adultos dentro do espectro que agora podem ser corretamente diagnosticados e tratados10, com melhora de qualidade de vida, possibilidade de tratamento psicológico e de comorbidades psiquiátricas.
REFERÊNCIAS
- American Psychiatric Association. (2014). DSM-5: Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Artmed Editora.
- Dias, S. (2015). Asperger e sua síndrome em 1944 e na atualidade. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 18, 307-313.
- Kanner, Leo. “Autistic disturbances of affective contact.” Nervous child2.3 (1943): 217-250.
- Asperger, H. (1944). Die „Autistischen psychopathen” im kindesalter. Archiv für psychiatrie und nervenkrankheiten, 117(1), 76-136.
- Frith, U. (Ed.). (1991). Autism and Asperger Syndrome. Cambridge: Cambridge University Press. doi:10.1017/CBO9780511526770.
- APA. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders: DSM-III.(1980).
- APA. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders: DSM-IV.(1994).
- Harrison, J. E., Weber, S., Jakob, R., & Chute, C. G. (2021). ICD-11: an international classification of diseases for the twenty-first century. BMC medical informatics and decision making, 21(6), 1-10.
- American Psychiatric Association. (2023). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais – DSM-5-TR: Texto Revisado. Artmed Editora.
- Lai, M. C., & Baron-Cohen, S. (2015). Identifying the lost generation of adults with autism spectrum conditions. The Lancet Psychiatry, 2(11), 1013-1027.