Abuso e dependência de drogas psicoativas

Atualmente, utiliza-se no mundo a Classificação Internacional de Doenças (CID) em sua 10ª e/ou 11ª versão (CID-10 e 11), desenvolvida pela Organização Mundial de Saúde (OMS), como padrão para se estabelecer um diagnóstico de abuso ou dependência de substâncias e procura englobar definições gerais para todos os países e culturas.  Outra classificação bastante utilizada é o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – 5ª versão (DSM-5), desenvolvida pela Associação Americana de Psiquiatria e difere em alguns aspectos da CID por apresentar especificidades da cultura norte-americana.

Ambas procuram uniformizar a terminologia diagnóstica a fim de que a comunidade médica e científica possa trabalhar com os mesmos padrões e seus códigos são utilizados também em relatórios e atestados médicos, bem como por planos de saúde e dentro do SUS – Sistema Único de Saúde.

Apesar de a CID-11 já estar disponível em vários idiomas ainda não temos sua versão em português, de forma que se faz necessários ainda abordarmos conceitos da CID-10.

  1. Uso nocivo – CID-10

A definição de uso nocivo indica um padrão mal adaptativo de consumo marcado pela perda do controle do uso e por prejuízos imediatos ou circunscritos ao episódio de consumo.

Ex. acidentes automobilísticos ou durante a operação de máquinas.

Fora dos episódios de consumo não há compulsão ou comportamento de busca pela substância –a pessoa pode ficar semanas ou mesmo meses sem consumo, porém se o indivíduo retomar o consumo da substância  haverá grande possibilidade do padrão de uso nocivo se reestabelecer.

Sua detecção é importante pois o uso nocivo pode rapidamente evoluir para um quadro de dependência, bem como trazer consequências desastrosas mesmo a curto prazo.

  1. Síndrome de dependência – CID-10

Para um diagnóstico de dependência por uso de alguma substância, é necessário que três ou mais dos seguintes requisitos tenham sido experenciados ou exibidos em algum momento do ano anterior:

(a) um forte desejo ou senso de compulsão para consumir a substância;

(b) dificuldades em controlar o comportamento de consumir a substância;

(c) um estado de abstinência fisiológico quando o uso da substância cessou ou foi reduzido;

(d) evidência de tolerância de tal forma que doses crescentes da substância são requeridas para alcançar efeitos originalmente produzidos por doses mais baixas;

(e) abandono progressivo de prazeres e interesses alternativos em favor do uso da substância psicoativa, aumento da quantidade de tempo necessária para se recuperar de seus efeitos;

(f) persistência no uso da substância, a despeito de evidência clara de consequências manifestamente nocivas.

DSM – 5: Transtorno por uso de substância (continuum)

Segundo DSM-5, para estabelecermos o diagnóstico de Transtorno por uso de substância faz-se necessário “um padrão problemático de uso [de qualquer substância psicoativa], levando a comprometimento ou sofrimento clinicamente significativos, manifestado por meio de pelo menos dois [de onze critérios possíveis] dos seguintes critérios durante um período de 12 meses:

1. A substância é frequentemente consumida em maiores quantidades ou por um período mais longo do que o pretendido.
2. Existe um desejo persistente ou esforços malsucedidos no sentido de reduzir ou controlar o uso da substância.
3. Muito tempo é gasto em atividades necessárias para obtenção da substância, na utilização da substância ou na recuperação dos seus efeitos.
4. Fissura, ou forte desejo ou necessidade de usar a substância.
5. Uso recorrente da substância, resultando no fracasso de desempenhar papéis importantes no trabalho, na escola ou em casa.
6. Uso continuado da substância, apesar de problemas sociais ou interpessoais persistentes ou recorrentes causados ou exacerbados por seus efeitos.
7. Importantes atividades sociais, profissionais ou recreacionais são abandonadas ou reduzidas em função do uso de substância.
8. Uso recorrente da substância em situação nas quais isso representa um perigo à integridade física.
9. O uso de substância é mantido apesar da consciência de ter um problema físico ou psicológico persistente ou recorrente que tende a ser causado ou exacerbado pela substância.
10. Tolerância, definida por qualquer um dos seguintes aspectos: a. Necessidade de quantidades progressivamente maiores de álcool para alcançar intoxicação ou o efeito desejado; b. Efeito acentuadamente menor com o uso continuado da mesma quantidade de substância.
11. Abstinência, manifestada por qualquer dos seguintes aspectos: a. Síndrome de abstinência característica da substância b. A substância (ou uma outra substância estritamente relacionada) é consumida para aliviar ou evitar os sintomas de abstinência.

Quanto à gravidade, a presença de 2 ou 3 critérios caracteriza um transtorno por uso de substância “leve”; 4 ou 5, um transtorno “moderado”; ao passo que o “grave” possui ao menos 6 sintomas.

O uso contínuo e prolongado de substâncias psicoativas traz alterações no organismo do indivíduo, especialmente no Sistema Nervoso Central. Tais adaptações e compensações contribuem tanto para a manutenção do comportamento de busca da substância bem como muitos dos sintomas de abstinência na interrupção ou redução do uso.

Além das características específicas de cada substância psicoativa utilizada, vários outros fatores contribuem para o risco de dependência, tais como: genética, neurobiologia e ambiente.

Quando avaliamos pessoas já com dependência química estabelecida, podemos colher diversas informações quanto à sua história de vida e o peso de determinadas variáveis no estabelecimento deste transtorno:

– Família: uso de drogas, manejo do cotidiano, experiências adversas;

– Sociedade: violência, estabilidade social, moradia, cultura;

– Pares: normas de convívio, atividades em grupo, peer pressure;

– Individual: valores, personalidade;

– Ambiente: disponibilidade da substância, propaganda;

– Substância psicoativa: características farmacológicas, via de administração.

Reforço positivo e reforço negativo

A Psicologia comportamental utiliza a teoria do reforço como forma de explicar o estabelecimento da síndrome de dependência, inicialmente através de modelos animais e mais recentemente com estudos de neuroimagem funcional em humanos.

Reforço pode ser definido como um estímulo que fará com que um determinado comportamento ou resposta se repita, devido ao prazer que causa (reforço positivo), ou ao “desprazer” ou desconforto que alivia (reforço negativo).

As substâncias com potencial de dependência possuem propriedades reforçadoras, ou seja, seu uso causa prazer ou alívio de sensações ruins – tristeza, raiva ou o desconforto da síndrome de abstinência na ausência da droga. Ambas as situações aumentam a chance de sua reutilização.

Sistema de recompensa cerebral

Cada droga de abuso tem o seu mecanismo de ação particular, mas todas elas atuam, direta ou indiretamente, ativando uma mesma região do cérebro conhecida como Sistema de recompensa cerebral.

O estímulo prazeroso no cérebro lança um sinal que provoca o aumento de dopamina – importante neurotransmissor do SNC (Sistema Nervoso Central) – no Núcleo accumbens – região central do sistema de recompensa e importante para os efeitos das drogas de abuso. Na figura 1 podemos observar a região do cérebro onde o Núcleo accumbens está localizado e as vias coloridas ilustram as diversas vias cerebrais que os neurônios dopaminérgicos estimulam. A via mesolímbica é a via mais implicada no mecanismo de recompensa cerebral.

O cérebro entende que os comportamentos realizados para buscar aquele estímulo prazeroso devem se repetir. Com o uso repetido das drogas de abuso diversos outros sistemas cerebrais são recrutados – amígdala, hipocampo, córtex pré-frontal – causando as adaptações comportamentais associadas ao uso prolongado que podem se desenvolver a partir da Síndrome de Dependência.

Figura 1. Corte sagital do Sistema Nervoso Central com as vias dopaminérgicas coloridas.

Quando uma droga é administrada repetidamente e não provoca mais o mesmo efeito, ou é preciso aumentar a dose para ter a mesma sensação, diz-se que a pessoa está “tolerante” àquele efeito da droga.

Esse fenômeno, a tolerância, é comumente encontrado nas pessoas que se tornaram dependentes das drogas, principalmente com drogas depressoras do SNC, como benzodiazepínicos, barbitúricos e altas doses de álcool.

Outras substâncias podem desencadear um efeito inverso ao da tolerância – ao invés de uma redução do efeito, ocorre um aumento do efeito após repetidas administrações. Esse processo é chamado de sensibilização e ocorre com drogas estimulantes, como anfetamina e cocaína.

Abstinência em geral leva a sintomas opostos aos observados quando sob o efeito agudo das drogas.

Nesses casos, observa-se uma “depleção” dos níveis de dopamina (isto é, uma redução importante devida ao excesso de liberação que ocorreu previamente), principalmente no núcleo accumbens.

Provavelmente isso desencadeia um desejo quase incontrolável (fissura) de usar a droga novamente, que invade os pensamentos do usuário de drogas, alterando o seu humor e provocando sensações físicas e modificação do seu comportamento.

Vários estudos relatam que a fissura está ligada tanto a desencadeadores externos (a própria droga, locais ou situações de uso) como internos (humor deprimido, ansiedade).

Estímulos ambientais muitas vezes atuam como gatilho para o uso de substâncias psicoativas, inclusive nas recaídas durante o tratamento. Áreas cerebrais ligadas à memória também recebem influência do sistema de recompensa cerebral e modulação dopaminérgica, de forma que muitos estímulos sensoriais iguais ou parecidos aos que estavam presentes no início da exposição à droga induzem à busca da substância. Por exemplo, a simples visão do local no qual o usuário costumava usar a droga pode estimular a vontade de usá-la, porque ocorreu uma associação entre o ambiente e o efeito da droga. Da mesma forma, tabagistas tendem a associar o uso do café ao cigarro, o uso de álcool ao cigarro etc.

Características herdadas por meio dos genes como predisposição a algumas doenças psiquiátricas ou o nível de prazer sentido pelo consumo da droga podem estar associados ao desenvolvimento de dependência. Estudos epidemiológicos têm estabelecido há muito tempo que a dependência de álcool, por exemplo, possui um componente familiar preponderante, com uma estimativa de 40% a 60% do risco para o desenvolvimento desse transtorno.

REFERÊNCIAS

  1. WELLS, R. H. C. et al. CID-10: classificação estatística internacional de doenças e problemas relacionados à saude. . São Paulo: EDUSP, 2011. Acesso em: 30 maio 2023.
  2. International Statistical Classification of Diseases and Related Health Problems (11th ed,; ICD-11; World Health Organization, 2019.
  3. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5.5.ed.Porto Alegre: Artmed, 2014.
  4. Cunha-Oliveira, Teresa, Ana Cristina Rego, and Catarina R. Oliveira. “Cellular and molecular mechanisms involved in the neurotoxicity of opioid and psychostimulant drugs.” Brain research reviews 58.1 (2008): 192-208.
  5. Emergências e interconsultas psiquiátricas em hospital geral/ Organização de Sandra Odebrecht Vargas Nunes; Heber Odebrecht Vargas; Luciana Vargas Alves Nunes; Juliana Brum Moraes; Marcos Liboni.—1ª ed. – Londrina: EDUEL, 2012.—306 p.